O Fim de uma Era: Canonical Desliga Pai do OpenPrinting Após 19 Anos e a Comunidade Linux Fica Órfã
Em um mundo cada vez mais governado por métricas e algoritmos de avaliação, qual o valor de um legado? O que acontece quando a contribuição humana, construída ao longo de quase duas décadas, é traduzida para um número frio em uma planilha e julgada insuficiente? Esta é a questão que ecoa na comunidade de software livre após a notícia de que a Canonical, empresa por trás do popular sistema operacional Ubuntu, demitiu Till Kamppeter, a figura central e líder do projeto OpenPrinting, após 19 anos de serviço. A demissão, segundo o próprio Kamppeter em relato ao The Register, não foi por uma falha técnica ou falta de dedicação, mas sim uma aparente vítima de um sistema de avaliação interna que se mostrou cego ao seu impacto externo.
Uma História Escrita em Código e Impressões
A jornada de Till Kamppeter é intrinsecamente ligada à história da impressão no universo Linux. Sua saga começou muito antes da Canonical, em 2000, quando foi contratado pela Linux Mandrake com uma missão pioneira: migrar o sistema de impressão da distribuição do antigo LPD (Line Printer Daemon) para o então revolucionário CUPS (Common Unix Printing System). Como ele mesmo relatou, essa mudança fez do Mandrake a primeira distribuição Linux do mundo a oferecer uma experiência de impressão simplificada, um marco para a usabilidade do sistema.
Seis anos depois, em 2006, durante o evento LinuxTag na Alemanha, o maior encontro de software livre da Europa na época, o destino interveio. Mark Shuttleworth, fundador da Canonical, encontrou Kamppeter em um corredor e fez uma proposta direta: continuar fazendo exatamente o que ele já fazia, mas agora sob a bandeira do Ubuntu. Kamppeter aceitou, tornando-se um dos pilares da empresa desde a era da primeira versão de longo suporte, a 6.06 "Dapper Drake". Foram 19 anos de vínculo, sendo 13 deles em tempo integral, dedicados a uma tarefa que muitos consideram ingrata, mas fundamental: fazer com que impressoras simplesmente funcionem.
OpenPrinting: O Tradutor Universal das Impressoras
Para entender a dimensão da perda, é preciso compreender o que é o OpenPrinting. O projeto é o sucessor moderno do CUPS, que foi adquirido pela Apple anos atrás. Conforme o The Register apurou em 2020, o OpenPrinting mantém um fork do CUPS (atualmente na versão 2.4.12) para garantir a compatibilidade com impressoras mais antigas. No entanto, sua grande força está na integração com tecnologias modernas como o IPP Everywhere, um sistema largamente "driverless" (sem necessidade de drivers específicos) co-criado por Michael Sweet, o autor original do CUPS.
Na prática, o OpenPrinting é a engrenagem que conecta o sistema operacional ao hardware de impressão, uma ponte que traduz comandos digitais em páginas impressas. O trabalho de Kamppeter e sua equipe não beneficiava apenas o Ubuntu, mas todo o ecossistema Linux, e até mesmo o Windows, através da compatibilidade com a Modern Print Platform. Era um trabalho para a comunidade, financiado por uma empresa, um modelo que parecia funcionar perfeitamente.
A Máquina que Julga: A Queda por um Sistema de Avaliação
Então, o que deu errado? A resposta, segundo Kamppeter, reside na frieza da burocracia corporativa. Com o crescimento da Canonical para cerca de 1.200 funcionários, a empresa implementou estruturas de avaliação típicas de "big techs". Uma delas é uma revisão semestral ponto a ponto, onde colegas avaliam uns aos outros com base em uma série de perguntas, gerando uma pontuação de 1 a 9.
Aqui reside a ironia trágica. "Como meu trabalho, o OpenPrinting, uma organização comunitária, acontece principalmente fora da Canonical, eu recebi pouquíssimas avaliações", explicou Kamppeter. Seu valor era imenso para o mundo Linux, para os usuários no Brasil e na Índia onde organizou projetos via Google Summer of Code, e para a própria Linux Foundation, da qual é membro. Contudo, para o algoritmo interno da Canonical, que valoriza contribuições diretas ao Ubuntu, seu impacto era invisível. Ele se tornou, nas palavras do The Register, uma "vítima acidental de um sistema de avaliação interno".
O Eco na Comunidade e o Futuro Incerto
A notícia da demissão gerou ondas de choque. Kamppeter relatou ter recebido inúmeros e-mails de ex-colegas expressando incredulidade e tristeza. Enquanto a comunidade lamenta, a Canonical se manteve em silêncio, afirmando ao The Register que não poderia comentar sobre a saída de funcionários. Agora, Kamppeter, uma figura conhecida e popular no cenário global de software livre, atualizou seu perfil no LinkedIn para "Open to Work", buscando um novo lugar para aplicar seu vasto conhecimento.
Sua saída deixa um vácuo e levanta questões existenciais para o modelo de desenvolvimento open source patrocinado por corporações. Até que ponto as métricas de desempenho corporativo são capazes de medir o bem gerado para uma comunidade aberta? A busca por eficiência automatizada corre o risco de expurgar justamente os elementos humanos que construíram a fundação de tudo? A história de Till Kamppeter na Canonical pode ter chegado ao fim, mas serve como um conto de advertência para uma indústria que, por vezes, esquece que por trás de cada linha de código e de cada sistema bem-sucedido, existe uma pessoa. Esperamos que seu talento seja rapidamente reconhecido e que a comunidade Linux não fique órfã de sua liderança por muito tempo.
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